Chegou o outubro rosa. Com um significado diferente para mim. Em julho operei um tumor e terminei em setembro minha radioterapia, 25 sessões, de segunda a sexta. Não senti pena de mim em nenhum momento. E também não perguntei “por que eu”. Meu câncer cor-de-rosa foi associado a 12 anos de reposição hormonal contínua.
A primeira coisa que a gente aprende sobre o câncer rosa é que “seio”, essa parte erógena preciosa para a mulher, vira “mama”. Se um tumor surge, mesmo pequeno e inicial, você aprende muito mais sobre você mesma. Se eu disser que sou mais feliz agora do que antes? Que tenho buscado a essência de tudo? E que celebro as paisagens, as amizades, o sol e a chuva com mais intensidade? Não é blábláblá. É a vida na veia.
Mudei hábitos, o mais concreto foi a alimentação. Não me enveneno mais com agrotóxicos ou mercúrio. Foi espontâneo. O tumor é transformador. Ensina a evitar venenos – na nutrição ou nas relações pessoais. Pode parecer autoajuda piegas. Mas não. Uma amiga que superou o mesmo tumor há muitos anos me sussurrou. “Ruth, é estranho dizer isso, mas você percebeu que tem o lado positivo?” Percebi.
Eu tinha feito um ultrassom de mama no fim do ano passado, como todos os anos. Nada foi encontrado. Não tenho histórico familiar. Nunca fumei, nunca engordei, nunca fui sedentária. Faço Pilates. Caminho seis quilômetros por dia. Amamentei os dois filhos durante o primeiro ano de vida. Álcool – um agressor para a mama, eu não sabia – é social. Estresse é uma condição do jornalismo. O ano passado foi um exagero.
Meu fator preponderante era a reposição hormonal. Alguns tipos de câncer de mama não têm a ver com hormônios. O meu tinha. Excluídas as outras causas, essa tem alta probabilidade. Aconselho mulheres a analisar bem o custo-benefício antes de fazer reposição na menopausa. Leiam o último estudo e editorial da revista médica britânica Lancet, publicada em agosto. A revista associa claramente o uso de hormônios na menopausa a câncer de mama. Quem usa tem mais risco do que quem não usa. A relação é menor que a do cigarro com câncer no pulmão. Mas existe. Outra informação que eu ignorava: depois de cinco anos de terapia hormonal contínua, o risco dobra.
Não havia caroço palpável nem dor. Fiz ultrassom e ressonância meses antes do prazo anual. Por intuição. Quando a biópsia dá positiva para carcinoma, a gente pensa na morte. Se eu morresse agora? O que deixei de fazer, quais são minhas frustrações, minhas derrotas? Fui invadida por uma sensação oposta. Que vida boa. Estudei com gosto, o jornalismo é paixão, dancei balé com e sem sapatilha, amei os homens certos, tenho filhos que me orgulham, netos que me tiram do sério e do eixo, viajei a mais de 60 países por prazer e profissão, escrevo, caminho, enxergo, rio. Minha vida foi e é generosa comigo. Melhor que dure mais.
Minuto seguinte, encarar com otimismo o desafio, o processo, as etapas, as dores, as inseguranças, as limitações, a cirurgia, o tratamento. Faço parte da minoria ínfima neste país com acesso aos melhores médicos, planos, hospitais e tecnologia. Escolhi o mastologista, marquei a cirurgia, cancelei e adiei compromissos. Rápido.
Nesses momentos extremos, quando não se sabe ainda o que nos espera, a gente conta aos filhos, ao namorado e a sete amigos, não mais que sete no meu caso. Que reagem só com amor, sem constrangimento ou comiseração. Mesmo assim, bate uma certa solidão. Porque é uma batalha só sua. Como se a praia estivesse no telão do cinema e a gente, no escurinho, de espectador. O câncer ainda carrega o estigma da infelicidade, mesmo que frequentemente seja menos triste e limitador do que outros males.
Cirurgia bem-sucedida, todos os prognósticos positivos, chegam os oncologistas a sua vida. E eles dizem. Você teve câncer, não tem mais. Agora só é preciso tratar com radioterapia para que não volte. O que não é 100% garantido. Naquele seio ou no outro. Planejamento computadorizado e individualizado, feito por uma mestra da radio.
Hoje existe um exame chamado Oncotype, ou teste genômico. O tumor retirado de 1,4 cm foi enviado para os Estados Unidos, numa placa de parafina, em 23 fatias, para que soubesse com certeza se deveria fazer quimio ou radio. Essas três semanas de espera do resultado foram as mais difíceis. Mesmo sabendo que a quimio existe para salvar, ela é mais invasiva, mais sofrida. Tinha medo. O resultado desse exame cruza uma série de circunstâncias: idade da paciente, tamanho e espécie do tumor. Quando recebi o resultado, chorei de alívio. Seria só radio. Admiro hoje mais ainda a garra das mulheres que superaram a quimio.
Alvos e cruzes foram desenhados a caneta azul e preta no seio. Me deram vontade de fazer tatuagem, um dia quem sabe. Nunca olhei para a máquina que me rodeava emitindo a radiação. Fechava os olhos e pensava em cachoeiras, mar, montanha, as brincadeiras com os netos, a Europa com meu namorado, os mergulhos com filhos em Fernando de Noronha, um filme a que queria assistir, a próxima coluna que escreveria. Dez minutos, não mais.
É imperativo beber no mínimo dois litros de água por dia. Usar cremes especiais para hidratar o seio. Não tomar sol na região. Mesmo com todos os cuidados, o seio avermelha, depois escurece e descama até a pele ganhar normalidade novamente. Não é bonito no começo. Mas que importância tem? E se o tumor for do tipo do meu, é preciso, após a radiação, tomar um remédio, um bloqueador hormonal, por cinco a dez anos. Tudo passa. Tive sorte.
Quando, muito antes – porque existe sim um antes e um depois –, eu mencionava ao clínico o meu medo do câncer, porque tinha perdido tantos amigos assim, e quando eu me mostrava insegura diante dos múltiplos tipos de tumor que parecem existir hoje, ele respondia. Ruth, só há dois tipos de câncer. O que mata e o que você cura.
Ruth de Aquino (64) é uma jornalista brasileira.
Desde aproximadamente 2007, suas colunas são publicadas na Revista ÉPOCA. Trabalhou na revista Manchete, na BBC de Londres, no Jornal do Brasil, onde foi editora internacional e correspondente de Fórmula 1. Foi editora-chefe e diretora de multimídia do jornal O Dia no Rio de Janeiro, diretora de projetos especiais da Editora Abril em São Paulo, correspondente das revistas da Editora Abril em Paris, redatora-chefe e diretora da sucursal do Rio de Janeiro da revista Época, da Editora Globo.
Foi presidente do Forum Mundial de Editores (WEF), da WAN (Associação Mundial de Jornais), com base em Paris. Foi consultora de multimídia para Ifra, organização baseada na Alemanha e especializada em tecnologia de redações e no novo profissional de jornalismo.