Vida espartana e projetos polêmicos, como estatização da maconha, atraem atenção global
MONTEVIDÉU - José Mujica conseguiu uma proeza incrível: colocou o Uruguai no mapa. Desde que assumiu a Presidência, em 2010, ele foi capa do “New York Times” e entrevistado pelos principais jornais da América e da Europa, por canais de TV japoneses e coreanos. Na Itália, foi chamado de “o Mandela sul-americano”, e o jornal “Guardian” imaginou como seria o Reino Unido se Mujica fosse primeiro-ministro. Todo esse alvoroço para o presidente de um país de três milhões de habitantes, perdido no Sul do mundo, e que só surge nas manchetes vez ou nunca por algo relacionado a futebol, costuma ter uma explicação tão implacável quanto discutível: Mujica é um presidente diferente.
A primeira coisa que chama a atenção é sua história de vida. Seu começo na política, acompanhando um dos caudilhos históricos de um dos partidos fundadores do Uruguai, depois sua conversão ao marxismo e seu papel no movimento guerrilheiro que se levantou nos anos 1960 contra um governo democrático do mesmo partido. Mujica passou 14 anos preso em condições miseráveis, e depois do retorno à democracia, em 1985, voltou à política, criou um grupo na coalizão de esquerda Frente Ampla, e foi subindo de posto, passando de deputado a senador, ministro, e finalmente, presidente da República.
O que mais impressiona em Mujica, porém, é seu estilo de vida. Ele continua morando numa modesta propriedade rural nos arredores de Montevidéu, dirigindo seu Fusca dos anos 1960, comendo em pizzarias de bairro. Isso além de doar 90% de seu salário a causas populares.
Como se isso fosse pouco para chamar a atenção, sua agenda de governo incluiu temas de justificado impacto global. Desde que Mujica assumiu o poder, o Uruguai permitiu o casamento entre homossexuais, legalizou o aborto e embarcou numa experiência sem precedentes de legalização do comércio da maconha. O curioso é que nenhuma dessas reformas tem sido um eixo central da ação política histórica de Mujica, que costuma se mostrar bem mais conservador do que o uruguaio comum quando comenta sobre esses temas.
Aí está um dos pontos-chave para entender a figura de Mujica, que tem um instinto para perceber os temas de impacto. Ele é a personificação do que se denomina “animal político”, e quem achar que ele é um vovô simpático pagará o preço.
Mujica sabe bem quais são seus pontos fortes e como aproveitá-los. Ele tem uma equipe especial para coordenar suas aparições públicas e entrevistas com meios de comunicação estrangeiros, aos quais leva para conhecer sua plantação de flores, seu trator e Manuela, sua cadela de três patas.
Mas os jornalistas uruguaios, que podem complicá-lo com perguntas sobre seu fracasso rotundo em temas que tinha estabelecido como prioridade, como a educação pública, a insegurança ou a relação com a Argentina, costumam ter que nadar por dezenas de filtros para muitas vezes acabarem afogados na areia.
Outra característica do Mujica presidente é a capacidade de transformar seu discurso de acordo com o público. Na Assembleia Geral da ONU e na Rio+20, queixou-se da voracidade da sociedade capitalista, no Uruguai, incentiva um polêmico projeto de uma megamineradora, um discutido porto industrial em plena zona costeira turística e a venda de terras públicas em torno de parques nacionais com o objetivo de instalar colônias agropecuárias.
Para explicar-se, Mujica cunhou uma de suas frases mais famosas: “Da mesma forma que digo uma coisa, digo outra”. Uma frase que descreve um presidente que, com suas particularidades, seu perfil humano e solidário, suas luzes e sombras, tampouco é tão diferente de outros que governam países mundo afora.