Para o filósofo, a mulher com anorgasmia é bloqueada por alguma coisa no seu passado que não necessariamente é um trauma gerado por abuso sexual
Muitos especialistas dizem que o homem com ejaculação precoce e a mulher com anorgasmia são os nossos maiores problemas sexuais. São também os de mais difícil solução. Todavia, o segundo carrega um peso ainda maior: a anorgasmia parece advir de múltiplos fatores que se somam.
A literatura técnica sobre a anorgasmia produzida por psicólogos e médicos não difere muito, na identificação de causas e nas promessas de cura, da literatura de divulgação e de autoajuda. As causas são sempre localizadas na infância e, dentre elas, estão as restrições morais da família, em geral a sua religiosidade. Nenhum escolarizado, mesmo que jamais tenha lido alguma coisa de psicanálise, questiona os elementos do campo psicossocial.
A mulher que não goza tem alguma coisa lá no seu passado que não necessariamente é um trauma gerado por abuso sexual. As expectativas dos pais a respeito do que avaliam como certo ou errado na vida moral e, portanto, sexual, é alguma coisa que vasa pelos seus poros, mesmo que eles jamais abram a boca para falar do assunto. Pais sufocados por um clima religioso que determina o sexo pecaminoso não precisam falar nada, as crianças ficam sabendo muito bem o que eles acham dos valores humanos. Mas não só a religião enquanto moral popular pode fazer do sexo um pecado. A vida sexual tomada como algo que mostra antes uma pessoa animalesca que um verdadeiro humano também funciona como elemento inibidor. Em resumo: Nietzsche qualificou o homem como o animal que valora, e então podemos completar dizendo que o filho do homem é quem paga o maior preço por essa valoração.
Os homens de ciência atuais estão tentando pular todo esse drama cultural. Aliás, essa é a moda do momento. Os cientistas querem dar um trança pés na cultura. Eles chutam a discussão filosófica para o lado e assumem que a vida mental emerge a partir de funções cerebrais que mais dia menos dia serão localizadas topologicamente. O estudo da bioquímica cerebral em conjunto com a melhoria dos mapas cerebrais permitirá que novos Colombos possam entrar no espaço neuronal com três caravelas e aportar em uma terra que irá dar muito mais que treze colônias. Mas nem todos os cientistas médicos estão indo buscar o gozo no cérebro.
A hipótese de que o prazer sexual está no cérebro, ainda que altamente sedutora por tudo que sabemos sobre neurologia e hormônios hoje em dia, quando olhada por um filósofo, em especial um nietzschiano, pode ser denunciada como mais uma trapaça de nossa tendência ao ascetismo. Ou seja, a religião teria sido posta porta afora, mas voltado sorrateiramente pela janela. Afinal, o cérebro pode ter prazer, mas é na xoxota que se goza. Então, abolindo pudores, alguns cientistas estão dizendo que é melhor consultar ginecologistas e, enfim, homens e mulheres que gozam para valer, se é que se quer mesmo agir em defesa do gozo. Esses cientistas querem dar um tombo na cultura por meio de um contato mais direto com o órgão sexual feminino. Eles acreditam que ampliando o “ponto G” com injeções de silicone a mulher pode ser devolvida à cama em trinta dias, para uma atuação aplaudida por um parceiro que a espera como uma heroína ninfomaníaca.
Bem, mas como não existe Paraíso na Terra, esse procedimento faz o que todo mundo acha que é uma lei: só fica mais rico quem já é rico. Tudo que os médicos comuns sabem é que o aumento do ponto G por meio de injeções de silicone pode fazer com que mulheres que deixaram de ter prazer voltem a tê-lo. Pode também fazer as mulheres que acham que tem um prazer que não é aquele desejado por ela ou pelo parceiro, ampliem o gozo. As anorgásmicas propriamente ditas, as que nunca gozaram, ou as frígidas, que nunca sentiram nada ou mesmo sentiram dor, não podem ser beneficiadas. Ao menos é o que se diz até agora.
Ora, mas se não se tem a solução para a anorgasmia por meio de tal intervenção, por que comemorar? Por uma razão simples. As mulheres que passaram por esse procedimento, e hoje já são muitas, confirmam o aumento do prazer. Ora, isso abre um espaço de reflexão e pesquisa que já teve seu prestígio, mas que as neurociências destituíram de status, e isso por causa da ênfase no cérebro.
A cerebralização do indivíduo é um processo filosófico – e talvez ideológico – semelhante ao que já ocorreu com o que no passado foi a centralização de tudo que somos na alma e, depois, no ambiente mental. Querer mexer no órgão sexual para curá-lo de moléstias ou prevenir câncer tudo bem, querer colocar o prazer e, portanto, o amor, nas partes baixas, eis o que não se poderia fazer. Ora, um pensamento que contraria a cerebralização, voltando a dizer que as pesquisas sobre o cérebro não precisam impedir as pesquisas sobre a vulva quanto à obtenção de satisfação sexual, talvez possa nos dar aquilo que muitos não chamam de mero prazer, mas de amor e felicidade.
Voltemos os olhos para a xoxota, ela talvez fale o que é para ser feito – pelos médicos.
*Paulo Ghiraldelli, 56, filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ –http://ghiraldelli.pro.br