Uma história de vida fantástica, de inúmeras superações. Porta estandarte da luta para que os albinos sejam vistos, respeitados, tenham cuidados e espaço na sociedade. Ela é Miriam Miguel (44), que superou inúmeras adversidades, preconceitos e VENCEU! Aliás, tem vencido, uma batalha à cada dia!
"Me chamo Mirian Dias Miguel, mais conhecida como Mirian Miguel. No dia 12 de setembro, farei 44 anos. Nasci em Campos dos Goytacazes, filha caçula e temporã de um casal que já tinha tido dez filhos e perdido as duas, mais velhas, ainda crianças. Então, sou a caçula de nove filhos, única nascida em hospital, quando a minha mãe, Benedita, tinha 42 anos e meu pai 46.
Para a surpresa de todos, nasci com albinismo. Sou a única filha albina, pais e irmãos negros.
O albinismo é uma condição genética, em que a melanina não é produzida o suficiente para
dar cor à pele, cabelos e olhos, de uma pessoa.
Minha mãe conhecia pessoas como eu, e mesmo tendo estudado pouco, sabia que era necessário proteger a minha pele do Sol e que eu iria ter problemas com a visão. A falta da melanina, na retina, influencia na formação da fórvea (conhecida como mácula) e por isso tenho visão subnormal, em que a qualidade da minha visão é extremamente baixa.
Meus pais eram muito pobres, chegaram a passar fome. Anos antes de eu nascer, minha mãe planejava sair do interior, para buscar uma vida melhor, para os filhos. Sendo analfabeto e funcionário de usina de cana de açúcar, meu pai tinha medo de não conseguir sobreviver, em cidade grande.
Um pouco antes do meu nascimento, com ajuda de uma de suas irmãs, minha mãe mandou meus irmãos, já adolescentes, para Niterói. Eles trabalharam para conseguir dinheiro o suficiente para alugar uma casa e levar o restante da família, para a cidade grande, Niterói, onde fui criada.
Fui uma criança tratada como alguém diferente, por crianças e adultos. Aos quatro anos, quando fui para a escola, comecei a perceber que eu tinha uma cor diferente dos demais e que isso fazia com que os meus coleguinhas caçoassem de mim. Sabem, não tenho lembrança do rosto das pessoas e de seus nomes, mas lembro bem, o que eu sentia.
Todas as vezes que me olhavam, com deboche, medo, raiva ou nojo, meu medo aumentava. Tinha medo que me olhassem. Tinha medo que me tocassem. Cheguei a ter medo que me matassem.
Culpa e medo, eram os sentimentos que marcaram a minha infância. Me sentia culpada por
ter nascido assim. Também culpava a minha mãe, porque eu achava que "vim com defeito",
por ela ter engravidado de mim, já com uma certa idade. Pouco sabia sobre genética e, ainda que a minha mãe dissesse que nasci albina, porque Deus quis, minha cabecinha não se conformava.
Todas essas questões internas, jamais tive coragem, de falar com ela. Com meu pai, muito menos. Acho que jamais ele entendeu, sobre albinismo. Mas, não duvidou da paternidade e foi o melhor pai que eu poderia ter. Me criou, me sustentou e me ajudou a ser honesta, sendo honesto. Não sentou para me explicar sobre a vida, porque, sendo um homem sem qualquer instrução, somente viveu, sem questionar. Trabalhava para levar o alimento. Foi homem, pai maravilhoso e avô amoroso. Faleceu em 2011, de câncer de próstata, aos 80 anos. Era um homem que sabia fazer contas muito bem, olhar as horas no relógio de ponteiro, fazia cálculo do troco, identificava os números dos ônibus e era o único que fazia compras de supermercado, lá em casa. Deixou uma casa para a minha mãe, onde ela mora há 35 anos. Homem de valor, meu pai Esmeraldo Miguel.
Meus questionamentos se limitavam a perguntar à minha mãe, porque, mesmo eu usando os óculos e sentando no primeira carteira da sala de aula, continuava tendo que colar o rosto no caderno e ir várias vezes até o quadro negro, para conseguir copiar as tarefas. Ela me explicava que todos que tinham a minha cor - que cor? - tinham a "vista curta". Era a expressão que ela usava.
Eu tinha que me sentir feliz, de não ter feridas pelo corpo, assim como outros albinos que
trabalhavam na roça, assim minha mãe relatava. Mas, eu não era feliz! Eu tinha uma revolta muito grande, dentro de mim! Não me conformava de ter sido escolhida por Deus, para ser humilhada todos os dias. De ser xingada por crianças como eu. Era difícil compreender ser amada pelo Deus da Bíblia, sofrendo tanto. Aos domingos, eu cantava que Ele amava todas as criancinhas, mas não me sentia protegida por Ele, nem na Igreja, porque até lá, eu era tratada como a menina esquisita também.
Era um desafio diário! Eu tinha que estudar e gostava muito de aprender. Ler era o meu passatempo preferido, visto que o hábito da leitura foi incentivado, porque não fui uma criança que podia brincar no quintal, por causa do Sol. Todos os dias eu era humilhada.
Todos os dias alguém me perguntava por quê eu era tão branca, ou se eu tinha sangue nas
veias.
A minha vontade era ser transparente, eu queria passar despercebida. Não sabia o que fazer, cada vez que alguém me apelidava, em alto e bom som, na rua e na escola.
Bom, minha mãe dizia que quem fazia isso comigo, eram os ignorantes. E eu tentava viver. Aos 12 anos, comecei a agir diferente, larguei a timidez de lado e intensifiquei a imagem da "menina prodígio", que as pessoas alimentavam, há muitos anos. Além de ser conhecida como a menina que escrevia bem, que fazia "contas de cabeça" e que tinha, aos 9 anos, alfabetizado a sobrinha, neta que meus pais criaram como filha, quis ser mais que isso: decidi que eu não ia demonstrar fraqueza e que as pessoas iriam me respeitar.
Assim, a partir dos 12 anos, quis ser a menina mais inteligente, mais falante e mais útil para todos. Lia a Bíblia na igreja, respondia às perguntas lá e na escola; levava a minha mãe ao médico, saía para marcar os exames, resolver problemas de cartório, banco e o que aparecesse. Como era desastrada para o serviço de casa e um tanto quanto preguiçosa para os afazeres domésticos, era mais útil, na rua. Eu precisava viver, foi à conclusão que cheguei.
Continuei sendo a patinha feia, a ser a última a ser chamada no time de handebol da escola, a única ignorada pelos meninos, mas pelo menos começaram a ter medo de mim.
Porque eu respondia de volta, não levava desaforo para casa e dizia a todos, que era muito bem resolvida, com o meu albinismo. E eu acreditava nisso!
O fato é que continuava a chorar, quando eu chegava em casa e continuava a não ter a menor vaidade, a ter dificuldade para enxergar e insegura, quanto ao futuro. Tão insegura, que não fiz vestibular e me contentei com o segundo grau e alguns cursos profissionalizantes da época, como datilografia. Tão insegura - por ter tido um namorico tímido aos 13 anos e um namoro de três anos, esse mais sério, mas que não deu certo - que me casei aos 29 anos - pela primeira vez - porque achava que estava na hora de sair de casa. Eu estava de volta ao mercado de trabalho, depois de seis anos desempregada, prestes a conquistar o sonho da casa própria, mas, para sair de casa para morar sozinha, eu teria precisado de um pouco mais de maturidade, que não tive, tanto é que o casamento não foi duradouro.
Sim! Entrei no mercado de trabalho! Depender dos pais e dos irmãos, financeiramente, era algo fora de cogitação! Muito menos do Estado. Minha mãe não me criou como uma pobre coitada. Era ela quem dizia que eu tinha que trabalhar, assim como meus irmãos fizeram.
Meu primeiro emprego, aos 18 anos, foi na igreja que frequentava, desde criança. E depois,
mais outra empresa, também em escritório, antes da fase do desemprego, que perdurou muito pelo fato de eu não estar dentro dos padrões estabelecidos pela sociedade.
A retomada para o mercado de trabalho me deu um nova vida! Eu tinha feito curso técnico em enfermagem, mas consegui uma vaga de trabalho numa grande empresa de telecomunicações. Consegui me adequar às exigências do telemarketing, mesmo com baixa visão. Foi possível entrar na faculdade de enfermagem e comprar um terreno, em Maricá, por prestação, onde construí a minha casa. A faculdade, não concluí por achar que, apesar de gostar de cuidar - cheguei a trabalhar em asilo e fazer atendimento domiciliar - eu não tinha qualidade de visão para o exercício da função.
Após ser demitida, em 2009, já separada e na necessidade de arranjar outro trabalho, adquiri meu primeiro computador, para que pudesse mandar os currículos, sem a necessidade de sair todos os dias, para lan house.
Foi aí que conheci outras pessoas albinas, no Orkut. Como única pessoa com albinismo, na família, não esperava que existia uma associação de albinos. Ao vasculhar fotos, conheci o Anderson, um soteropolitano. Ele era fundador da APALBA (associação das pessoas com albinismo na Bahia) e foi o primeiro albino com quem mantive contato. Anderson era um rapaz simples, porém politizado e cheio de vontade de viver, apesar de, aos 29 anos, já ter câncer de pele, pelo diagnóstico tardio, de sua condição como pessoa albina. E foi exatamente o fato dele ter recebido o diagnóstico tão tardiamente, que me chamou a atenção para as necessidades das pessoas com albinismo, no Brasil. À medida que a nossa amizade era consolidada, eu me aproximava, mesmo virtualmente, do que chamávamos de "causa albina".
Não demorou muito e eu fui conhecer o amigo Anderson, em São Paulo, que era onde ele tinha transferido o seu tratamento. Foi possível conhecer outros albinos e me sentir parte dessa causa.
O encontro com essas pessoas, me proporcionou uma transformação muito grande! Vi pessoas com as mesmas dificuldades, com as mesmas queixas do bullying da infância, mas muitos com um direcionamento diferente. Talvez a megalópole, junto à história familiar de cada um, tenha ajudado alguns albinos a terem trilhado outros caminhos, diferentes dos meus: uns tinham curso superior, outros aprenderam a tocar instrumentos musicais, outros trabalhavam em órgãos públicos, ocupando vagas como pessoas com deficiência e por aí vai.
A vitória pessoal de cada albino que conheci em São Paulo, não me entristeceu. Muito pelo contrário! A vida me proporcionou alguns avanços, como me permitir olhar para mim de forma diferente, porque a autoestima não era boa e eu me pus à prova. Depois de ver moças albinas usando roupas coloridas, mudei meu modo de vestir. Vestir as cores vermelha e branca, hoje em dia, é uma grande vitória, pra mim! Achava o vermelho escandaloso demais e o branco, só no uniforme escolar.
Me permiti participar de um ensaio fotográfico e foi uma experiência muito feliz, que me proporcionou a pôr em prova a minha autoimagem. Sabia que para mim já não era possível alcançar certos objetivos, mas decidi que eu ia ajudar a quem pudesse. E assim comecei a pensar como o Anderson me aconselhava: fazermos uma associação nacional.
Após 2 anos que conheci o Anderson, ele faleceu. O câncer de pele era muito agressivo. Não preciso entrar em detalhes como eu fiquei, certo? Mesmo ano e mês do falecimento do meu pai. Não foi fácil. Mas, eu tinha uma missão.
A minha visão subnormal, depois de alguns anos no mercado de trabalho, começou a declinar ainda mais, me prejudicando muito, no emprego. A princípio, fiquei muito triste, porque eu corria o risco de perder totalmente a visão. Mas, fiquei grata a Deus, por ter me permitido tentar. Tentei e não me arrependo. Entendi o momento de parar, porque fui
elogiada por muitas pessoas, por eu ter tido a coragem que tive.
Foi então, que comecei a me dedicar a trabalhar na "causa albina". O Facebook era a rede social do momento, tínhamos um grupo que reunia albinos do Brasil e estrangeiros também.
Fui "caçar" albinos do Rio de Janeiro na internet, porque acreditava que podíamos fundar uma associação no estado. Nesta, conheci meu segundo relacionamento sério, digo, casamento, que durou quase dez anos, (mas que acabou e eu me nego a falar sobre) e alguns albinos fluminenses, mas, que de imediato, não se entusiasmaram com a ideia de unirmos para nos organizar.
Cheguei a fazer um encontro, muito tímido, num shopping da zona sul, onde três albinos, além de mim, compareceram. Além do meu ex marido, outro com o qual tive e tenho uma relação de amizade, até hoje, é o Etiel. (Falarei mais dele, adiante).
Já que o sonho de uma associação fluminense ou nacional de albinos, era quase uma utopia, resolvi trabalhar ao estilo "home office". O mesmo computador, que eu tinha comprado, na intenção de arranjar um novo trabalho, me serviu para servir os albinos brasileiros. Me fiz de balcão de informações: conversava, aconselhava e orientava a todos que me procurassem no Messenger, incluindo os pais de crianças albinas. Fazia bem o trabalho de administradora do grupo, com intenção de que aquele sítio virtual fosse uma espécie de enciclopédia, visto que a internet está cheia de informações equivocadas, sobre o albinismo. A intenção era desmistificar, informar e dar voz à pessoa albina.
Fui percebendo que haviam adolescentes passando pelo mesmo processo que eu tinha passado, quando tinha a idade deles. Muitas mães não sabiam lidar com o fato do filho não poder tirar sua CNH, muitas famílias sem o diagnóstico preciso, com dúvidas sobre óculos, proteção solar, seus direitos na escola, também não entendiam a visão subnormal e tantas outras questões que envolvem o dia a dia da pessoa albina.
Não fazia muito tempo, que eu tinha descoberto que eu era considerada, legalmente, como pessoa com deficiência e, por isso, com alguns direitos. Ainda que não usufruísse de alguns benefícios, informava para quem procurava entender. Eu tinha o hábito de apresentar umas pessoas às outras: albinos do mesmo estado, mãe de albino que tinha conseguido tal tratamento - como estimulação precoce - para outra mãe e por aí vai. Eu fazia o que estava ao meu alcance. E fui muito feliz, em servir a quem eu jamais vi pessoalmente, mas que me agradecia, por eu ter feito alguma diferença, na vida dela. Não tem preço!!
Um ano e meio após o falecimento do Anderson, em setembro de 2012, fui convidada a participar de um encontro de pessoas albinas, em Salvador, cujo nome foi em homenagem ao meu querido amigo, fundador daquela associação. Foram quatro dias intensos, de reuniões e mesas de discussões, com associações diversas e autoridades políticas da Bahia e do Nordeste, me dando o tom que eu precisava, para entender o importante trabalho que a APALBA vinha desenvolvendo. Mas, impossível ter toda aquela estrutura, se não tiver gente com vontade para fazer, foi a conclusão a que cheguei.
No retorno para casa, vim no mesmo vôo da Nereida, uma enfermeira, que escolheu a carreira docente e é professora na UFRJ, da Escola de Enfermagem Anna Nery. A filha de coração, albina, tinha despertado nela, o interesse pelo tema e por isso ela tinha participado do encontro estadual. Depois de algumas semanas, ela conseguiu que a Universidade abrigasse os albinos fluminenses, num projeto de extensão, com nossa participação, como parte da população interessada. Pronto! A partir de 2013, tínhamos uma sala no centro da cidade do Rio, com internet, banheiro, água fresca e ventilador, para que pudéssemos nos encontrar.
Mesmo assim, não foi fácil! Parecia que o preconceito ainda era grande, entre os albinos, adicionado à falta de interesse, oriundo talvez de pouco estudo, aliado à preguiça, talvez.
Enfim... O fato é que o grupo se formou, mas não tínhamos braços suficientes para adentrarmos nas secretarias municipais e estaduais, pertinentes aos nossos interesses. Por isso, ficamos no campo da pesquisa científica e nas mídias.
Uma das reclamações dos albinos internautas, é que não há uma visibilidade por parte do poder público, sobre as nossas necessidades, que vão do diagnóstico, passando pela estimulação precoce, cuidado com a pele (com consultas dermatológicas, orientação sobre filtro solar, redução do custo do mesmo, etc), sobre a visão subnormal (consultas oftalmológicas e encaminhamentos para recursos com mais precisão); sobre a questão social (benefícios em geral) e na educação (com várias reivindicações, como o uso de recursos não ópticos e material didático ampliado, por exemplo).
Como eu e meu pequeno grupo não conseguíamos avançar nessas discussões, resolvi atender outra necessidade, que era do âmbito da sociedade, como desmistificar o albinismo, enfatizando na informação, dando visibilidade nas mídias. Para tal, aceitei convites para participar de programas de tv, dei entrevista a um jornal e à uma rádio com publicações virtuais e até em clipe da cantora Ana Carolina eu me meti. Não só eu, mas meu amigo Etiel (daquele que falei antes). Queria que as outras pessoas albinas, olhassem para mim e dissessem: se ela vive, eu também posso viver. Há muitos albinos no buraco da depressão. A minha intenção era que elas entendessem que são seres humanos também, apesar das críticas e do bullying pesado.
Paralelamente, buscamos fazer um grupo que oferecesse ajuda a quem chegasse. Tínhamos tudo, menos dinheiro! Tínhamos sorrisos, abraços, tempo para ouvir histórias, buscamos profissionais para dar palestras... Enfim, a intenção era fortalecer as famílias que nos procuravam. Demos encaminhamentos, palestrei para os universitários duas vezes, participamos de seminários promovidos pelo nosso grupo de extensão, rimos e choramos.
Valeu a pena. Não fundei a associação, mas fui onde meus braços podiam abraçar. Abraços afetuosos foram dados. Quatro anos depois, vi que a minha missão, naquele grupo, terminava ali. Não saí brigada, nem fui convidada a sair. Me retirei, por acreditar que os albinos fluminenses precisavam seguir o seu caminho. E que a Mírian Miguel tinha feito a sua parte. Hoje, me orgulho de ver que os albinos pelo Brasil afora se reúnem, produzem material de estudo, fazem TCC's, têm grupos no WhatsApp, produzem material científico e de mídia, em prol da "causa albina".
Em 2016, aconteceu algo maravilhoso, em minha vida! Era o ano que eu completaria 40 anos e Papai do Céu resolveu me dar um presente que usufruo, até hoje: Haylla e Hayssa, priminhas albinas, que tinham 8 e 10 anos, respectivamente. Não sabia da existência delas!
Primas distantes pelo parentesco, mas agora próximas ao meu coração, elas moram em Campos, minha cidade natal e o sobrenome da mãe delas, Miguel, fez com que chamasse a atenção de ambas, numa página do Facebook sobre albinismo. Trocamos algumas informações e descobrimos o grau de parentesco. A família do meu pai, com quem sempre tive pouquíssimo contato, agora estava ali, fazendo essa conexão comigo, por causa do albinismo.
Elas são o meu coração, as filhas que eu não tive. Me sinto orgulhosa por participar da vida
das minhas Branquinhas, orientar e ajudar no que for preciso. Ofereço a elas o suporte que a minha família não teve, nesse lugar de cuidado à uma criança albina, orientando, informando e acima de tudo, mostrando que o albinismo não deve significar sofrimento, desde que as situações sejam bem conduzidas.
Olho para o futuro delas e vejo que é possível ser uma criança feliz, mesmo com albinismo e que o preconceito, a gente resolve com informação. O bullying, com pulso firme e todo o resto, com muito amor no coração. Não é preciso brigar, para ser feliz.
Com a maturidade, hoje eu vejo que a minha causa em favor das pessoas não deve mais ser pela cor de pele, condição genética e até mesmo pela deficiência que elas possuem. A luta de classes mais nos separa do que agrega. As minorias contra um grupo majoritário, cobrado, muitas vezes injustamente, por não atender as necessidades dessa minoria, que, sempre clama por um ajuste social, com muitas cobranças, mas sem muitas responsabilidades a cumprir.
Acredito que, pela via da união e não da luta de classes, alcançaremos um mundo mais justo. A pobreza está no lar do branco e do preto, do cego e do vidente, do sulista e do nortista. Precisamos olhar para o futuro, antes, buscando o perdão, não apontando para
nenhum branco, dizendo que ele é devedor dos negros, mas dando-nos as mãos, buscando saber da necessidade do nosso irmão, ajudando-nos uns aos outros. Essa é a minha meta de vida!
MAIS DETALHES DA MINHA VIDA E A AVERSÃO PELA COR BRANCA
Desde muito nova, nunca gostei da cor branca. Não só da cor, mas a palavra “branca” já me causava arrepio, quando ouvia na rua ou no ônibus, porque quase sempre as pessoas estavam se referindo a mim, com aquele espanto costumeiro, de ver uma criança tão alva...
Nem sempre era de mim que estavam falando, mas isso não fazia diferença nenhuma, porque me sentia constrangida, da mesma forma.
Vestir branco? Só a blusa da escola, usei por anos! Minha tortura. Sentia ficar mais branca ainda. Se é que isso é possível!?!
Os anos passaram e aos 29 anos, de casamento marcado, me deparei com esse dilema: qual a cor do meu vestido de noiva? Pra dizer a verdade, eu não queria me casar na Igreja. Nunca tinha me sentido no direito de me casar, muito menos numa cerimônia religiosa, com toda “pompa e circunstância”. Mas para agradar a família, me propus a esse “sacrifício”. Todos os planos que envolviam essa data estavam sendo cumpridos, desde a decoração ao bolo. Mas e o vestido?
Pensava que ia parecer um fantasma, vestida de branco. Que ia ficar mais apagada ainda, que ia ficar horrível e eu ia servir de motivo de chacota para a maioria. Depois que confidenciei meus medos a dois amigos do trabalho, um deles me disse que de vestido de cor champanhe sim, eu ficaria esquisita. Que eu não tinha motivos para escolher o azul e que de branco eu ia parecer uma “bonequinha”. Ri dessa comparação, claro. Eu? Boneca?
Acho que no fundo eu tinha o sonho que a maioria das mulheres tem: casar na Igreja, com um lindo vestido. Acredito que o albinismo me roubou esse sonho, durante muitos anos da minha vida, mas que ele aflorou, porque decidi encarar o desafio: casar de branco!
Um vestido branco, com calda, sua saia bem rodada com detalhes dourados nas duas bainhas, porque tinha um babado. A parte superior do vestido, de crochê, sem manga, trabalhado com pedras douradas e brancas. Diferente, original e surpreendente, assim como eu!
Casei numa tarde de outono, uma cerimônia simples e bonita. Lá estavam minha família e poucos amigos. Eu não parecia a menina espantada, querendo fugir de todos, com vergonha de mim mesma. Eu era o centro das atenções. Fui muito elogiada! Primeira vez que fiz uma maquiagem. E foi a primeira vez que fui popular. Mas eu preciso confessar que não fui tão forte assim: pintei meus cabelos, numa mistura de dois tons de loiro, como resultado fiquei com os cabelos loiros, porém mais escuros, que contrastou muito bem com o vestido e a minha pele branquinha. Foi isso que disseram e eu concordei. Fui a noiva mais linda que eu já vi!
MINHA ADOLESCÊNCIA
Aos treze anos, todas as amigas da escola já tinham experimentado o sabor de um beijo e um namoro, mesmo que um compromisso às escondidas da família. Sempre acreditei que eu ia ficar sozinha. Afinal, quem ia querer ficar com uma menina tão branca e tão feia, como eu?
Pensam que era um exagero meu? Não, não era. Alguns meninos da escola e até mesmo da Igreja que eu frequentava, não falavam comigo, simplesmente por eu ser albina.
Acreditam que até hoje tem gente que me ignora? Poucos, mas existem. Na adolescência, uns meninos me desprezavam, fingiam que eu não existia. Outros me olhavam com desprezo e tinha alguns que verbalizavam isso, através dos xingamentos e apelidos que me causavam constrangimento.
Na escola tinha um menino chamado Hugo. Era o mais bonito de todos. Não só eu achava isso, mas a escola toda! Pele clara, olhos verdes, cabelo sempre muito bem arrumado e simpático. E tinha outro charme: ele era super na dele, dando aquele ar de mistério, que deixava as meninas enlouquecidas!
Até que um dia uma colega veio com um grande sorriso nos lábios, me contar que Hugo tinha dito que queria “conversar comigo”. Não sou da época de “ficar” e sim conversar.
Acham que eu acreditei? Claro que não! Aquilo estava parecendo mais uma armadilha. Mesmo sendo a Ângela minha amiga desde os oito anos de idade, eu pensei que tinha gente tentando me enganar, que quando eu me mostrasse interessada no menino, eu ia ser cercada por um grupo de adolescentes e ser ridicularizada. Como aquele menino lindo ia ter coragem de andar de mãos dadas com uma garota como eu? Além da minha brancura, eu era magrela, óculos de fundo de garrafa, e um quadro de acne que me acompanhou por muitos anos.
Por isso eu falei que não queria conversar com ninguém. Fiquei tensa com aquela situação. Não demorou muitos dias, Hugo passou por mim e sorriu. Ah, quanto abuso! Disparei: - Está rindo pra mim ou da minha cara?
- Pra você, claro. Queria muito conversar com você, sabia? Fingi não ter entendido, mas não demorou muito pra eu me apaixonar e Hugo me procurar, para a tal “conversa”. Não aconteceu tão rápido o beijo esperado, mas o carinho, o sorriso e as palavras bonitas me fizeram entender que eu era uma menina, como qualquer outra.
Mas o encanto durou pouco tempo. Tive medo. Medo dele enjoar de mim, de ter vergonha de dizer aos amigos que estava me namorando, medo de alguma menina bonita aparecer em sua vida e eu ficar sozinha...
Hoje vejo que não foi medo que eu senti. Não me faltou coragem. Faltou autoestima. Isso é comum para uma criança que nasce diferente das demais, que tem sua vida marcada pela discriminação e preconceito alheios.
Custou muito tempo para eu entender que nem todos vão me olhar como se eu fosse um ser de outro mundo, que eu posso ser feliz e experimentar o amor, assim como todos os outros seres humanos. Depois dessas descobertas, namorei bastante! Casei-me aos 29 anos, me separei dois anos depois. Não vou entrar em detalhes do que aconteceu depois, porque a vida segue e o futuro a Deus pertence!
POUCA AUTOVALORIZAÇÃO
Quando uma pessoa nasce diferente da maioria, assim como eu, geralmente tem problema com sua autoimagem. Eu tinha horror à fotografia! Nunca deixei de tirar fotos, por achar que era importante o registro da ocasião, mas sempre fiz questão de esconder todas.
Sempre ficava esquisita em todas as fotos tiradas. Além de ser muito branca, ficando sempre muito rosa nas fotos e os olhos vermelhos, tinha também outros detalhes: minha extrema magreza, meus óculos de fundo de garrafa e minhas espinhas no rosto me deixavam o menos fotogênica possível, se é que essa expressão existe.
De uns anos pra cá, com as redes sociais, comecei a ter contato virtual com outras pessoas com albinismo. Conheci alguns que pareciam não ter vergonha nenhuma de se exibir, com muitas fotos postadas no Orkut. Achava aquilo tão estranho... Um dia vi de uma, com um vestido longo e vermelho, e maquiada. Fiquei chocada! Como ela tem essa coragem de fazer pose, vestir essa cor chamativa e se maquiar?
Demorou um tempo para eu entender a questão da autoaceitação. E quando isso aconteceu, quis me certificar se realmente eu tinha vencido essa fase da minha vida: da autoexclusão, da auto piedade, da autoestima baixa.
MINHA OPORTUNIDADE
Foi quando eu soube de um fotógrafo, que decidiu fotografar albinos. Quando vi o trabalho dele, achei interessante, porque ele em momento algum escondia a “brancura” dos
fotografados. Ao contrário, parecia fazer questão de evidenciar isso. Era a minha oportunidade!
Moro em Maricá, uma cidade do interior do Rio de Janeiro e viajei algumas centenas de quilômetros até São Paulo para ser fotografada. Vou tentar contar como me senti, mas acho que não conseguirei passar para vocês toda a emoção, vivida naquele dia: tudo começou com muita timidez, mesmo eu não me considerando alguém tímida. Mas me expor ali, sabendo que minha imagem ia ser publicada em sites, revistas e exposições, me fez ficar com vergonha. Aos poucos fui me soltando. Fui gostando de estar ali, de me sentir como qualquer outra mulher, que posa para fotos, que se acha bonita, que sabe o que está fazendo e acima de tudo, se sentindo segura!
Gustavo, o fotógrafo, foi peça fundamental nesse processo. Não sei se por experiência profissional, por sensibilidade de ser humano que é, por feeling... mas posso afirmar que ele entendeu o meu momento de timidez, aproveitou isso também, e me ajudou a entender que eu podia perfeitamente estar ali, como qualquer outra pessoa, e me ajudou a aflorar a “modelo que existe em mim”.
Depois dessa experiência, não tenho mais problemas com minha aparência. Falo não somente de fotos, mas da minha forma de me vestir e do meu comportamento, em geral. Não escolho mais minhas roupas, com intenção de me esconder. Hoje sinto mais confiança em mim mesma. Hoje me olho no espelho com prazer! Hoje sou a pessoa mais exibida que eu já conheci!
EU VENCI, aliás, venho vencendo uma batalha a cada dia, com ajuda de Deus e de amigos que me olham como uma mulher normal, como uma mulher de todas os sentimentos, sensações, vontades e cores, afinal, a cor BRANCA é a reunião de todas as cores!