Organização das Nações Unidas e Organização Mundial de Saúde pedem que governos tratem o tema como prioridade durante a pandemia. Mulheres na Zona Leste de São Paulo criaram rede de apoio às vítimas durante quarentena e confrontam agressores.
Uma em cada três mulheres em todo o mundo já sofreu violência física e/ou sexual, mas "é provável que esta crise piore como resultado da pandemia" do novo coronavírus (Sars-CoV-2), aponta o relatório "A sombra da pandemia: violência contra mulheres e meninas e Covid-19".
O documento foi divulgado em abril pela ONU Mulheres, entidade da Organização das Nações Unidas para igualdade de gênero e empoderamento.
O secretário-geral da ONU, Antonio Gutierrez, disse em um comunicado no começo do mês que "nas últimas semanas, à medida que as pressões econômicas e sociais e o medo aumentaram, vimos uma onda global horrível de violência doméstica". "Em alguns países, o número de mulheres que telefonam para serviços de apoio dobrou."
Foi o que aconteceu em um bairro na Zona Leste de São Paulo. Diante do aumento desses episódios, mulheres imigrantes moradoras da região criaram um grupo no WhatsApp para receber pedidos de socorro e oferecer ajuda às vítimas de violência.
Elas relatam que ambientes familiares que já eram violentos antes da pandemia ficaram mais agressivos diante da falta de dinheiro – quase todos ali trabalham em oficinas de costura, que estão fechadas desde o dia 17 de março – e do convívio em tempo integral dos familiares dentro de casa.
"O grupo é formado por 22 mulheres que já orientavam e faziam trabalho educativo contra a violência doméstica no bairro antes da pandemia. Com o isolamento, essas mulheres da liderança ficaram impossibilitadas de sair de casa. Então, elas passaram a usar o telefone para se comunicar com as mulheres e falar diretamente com o agressor”, contou Silvia, uma senhora que oferece ajuda assistencial ao grupo.
Ela e as demais participantes preferiram não se identificar. Após receber a denúncia da vítima por meio do aplicativo, as mulheres do grupo fazem a denúncia pelo telefone 180 e acionam o serviço social da região.
"O problema é que nunca temos uma resposta rápida dos serviços de proteção e socioassistencial do governo. Já não tínhamos antes, agora, então...", afirma Silvia. Diante da emergência, as mulheres da liderança começaram a ligar para os agressores.
"Elas ligam para o homem e falam: 'Estamos sabendo que você bateu na sua mulher. Já alertamos a vizinhança e todo o bairro está de olho em vocês'", conta a senhora. "Isso não resolve o problema, mas estamos tentando minimizar a situação nesse momento."
Uma das últimas mulheres a pedir socorro ao grupo pelo WhatsApp havia sido espancada pelo marido na primeira semana da quarentena. “Ligamos para ele e demos o recado. Avisamos os vizinhos. Agora, estamos acompanhando diariamente a situação na casa. Não houve mais agressão desde então”, diz Silvia.
Em abril, a Organização Mundial da Saúde (OMS) passou a demonstrar maior preocupação com o aumento das agressões contra as mulheres na pandemia.
“Pedimos que os países considerem os serviços de combate à violência doméstica como um serviço essencial, que deve continuar funcionando durante a resposta à Covid-19”, afirmou o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, em uma entrevista coletiva da qual participou em 3 de abril.
Delegada oferece ajuda em condomínio
A delegada Raquel Gallinati, presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo (SINDPESP) explica que a pandemia pegou todos os setores da sociedade de surpresa, inclusive o setor da segurança pública. “Obviamente, não temos leis que tratem da violência doméstica especificamente nessa situação de isolamento. Por outro lado, essa violência se potencializou com o confinamento 24 horas."
Moradora de um condomínio em São Paulo, a delegada fez um cartaz – e compartilhou no grupo de mensagens dos vizinhos – dizendo que seu apartamento está aberto para abrigar mulheres vítimas violência doméstica durante o isolamento (veja abaixo).
"Todos nós, enquanto sociedade, devemos nos colocar à disposição para tentar minimizar os efeitos colaterais desse momento. Se você ver ou ouvir uma violência contra a mulher durante a quarentena, denuncie, chame a polícia”, disse a delegada.
Cartaz feito pela delegada Raquel, em que ela oferece
a própria casa com abrigo à vítimas de violência
doméstica durante o isolamento social. — Foto: Raquel Gianetti
Quanto à iniciativa de oferecer o próprio lar para abrigar uma vítima de violência doméstica, Raquel aconselha a pessoa que pretende fazer o mesmo a ponderar os riscos que envolvem a situação.
"Se você mora em condomínio, onde o convívio com os vizinhos é mais próximo, e você conhece essa vítima, acolha essa mulher – esse gesto pode evitar um feminicídio. Mas é preciso ponderar a situação e não fazer nada em que você poderá se tornar uma vítima também."
Aumento da violência doméstica no Brasil
O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos informou que a quarentena gerou um aumento de quase 9% no número de ligações para o canal Ligue 180, que recebe denúncias de violência contra a mulher: entre os dias 1° e 16 de março, foram 3.045 ligações e 829 denúncias; já entre os dias 17 e 25 de março, esses números saltaram para 3.303 e 978, respectivamente.
Diante do aumento, a pasta lançou no dia 2 de abril o aplicativo Direitos Humanos Brasil, em que as vítimas de vários tipos de violações de direitos humanos, incluindo a violência doméstica, poderão entrar em contato com autoridades durante o isolamento e pedir socorro.
Em São Paulo, o registro pela internet de boletim de ocorrência de violência doméstica começou a valer desde 2 de abril. Antes, a vítima precisava ir presencialmente à Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) para registrar a agressão.
Segundo a delegada Jamila Jorge Ferrari, coordenadora estadual das DDMs de São Paulo, a Polícia Civil implementou a medida após as delegacias do estado relatarem diminuição de mulheres e dos registros de boletim nas duas primeiras semanas de quarentena, decretada no dia 17 de março.
"Temos receio de que as medidas de isolamento social possam causar subnotificação dos casos de violência doméstica neste momento", diz a delegada.
Ferrari alerta que, ao registrar o boletim de ocorrência na delegacia eletrônica, a vítima deve informar a melhor maneira de a polícia entrar em contato sem que o agressor fique sabendo, já que ele passa 24 horas por dia em casa.
"Por exemplo, ela pode escrever que prefere que a polícia ligue para a casa da mãe dela, ou que entre em contato por meio de aplicativo de mensagem ou e-mail."
A delegada informa que a Polícia Civil está incentivando a população a denunciar os casos de violência contra a mulher pelos números 180 e 190.
"Se ouvir gritos, choro, quebradeira, briga, ligue e denuncie. A denúncia é anônima e pode ajudar a salvar vidas, principalmente neste momento em que a vítima está afastadas do seu círculo social."
Na cidade de São Paulo, houve um aumento no número de prisões em flagrante de violência doméstica – passaram de 177 em fevereiro para 268 em março.
Outro exemplo desse aumento é Blumenal (SC), onde as ocorrências de violência doméstica subiram 39%.
Já em Maricá, segundo informações do chefe dos inspetores da 82 DP, o aumento da violência em comparação com o mesmo periodo do ano passado, é da ordem de 29%.
Quanto aos casos de feminicídio, dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram que houve aumento expressivo do assassinato de mulheres dentro de casa em março, em São Paulo (46%), Acre (100%), Rio Grande do Norte (300%) e Mato Grosso (400%). A comparação foi realizada com março de 2019.
Aumento da violência doméstica no mundo
Veja, abaixo, dados da ONU Mulheres e da OMS sobre o aumento da violência doméstica nos países afetados pela pandemia de coronavírus:
Na França, o registros de casos de violência doméstica aumentou em 30% desde 17 de março, quando o país decretou a quarentena – em Paris, o aumento foi de 36%.
Na China, as denúncias de violência contra a mulher triplicou durante o período de confinamento, entre janeiro e começo de abril.
Na Argentina, houve aumento de 25% nas denúncias telefônicas desde 20 de março, quando o país adotou medidas de isolamento.
Em Singapura, o aumento nos registros de denúncias foi de 30% em março.
Na Malásia e no Líbano, as denúncias de violência contra a mulher duplicaram durante o período de confinamento.
No Canadá, França, Alemanha, Espanha, Reino Unido e Estados Unidos, autoridades governamentais relatam crescentes denúncias de violência doméstica e aumento da demanda para abrigo às vítimas.
Na contramão do aumento da violência doméstica no mundo, a Itália observou uma diminuição nas ligações de denúncia durante o confinamento: nos primeiros 15 dias de março, o serviço de proteção do país recebeu 652 ligações – no mesmo período em 2019, foram 1.104 ligações, de acordo com a agência de notícias Reuters.
Ainda segundo a Reuters, um relatório do comitê parlamentar italiano sobre violência contra a mulher citava que a diminuição era um sinal de que "as vítimas de violência corriam o risco de ficar ainda mais expostas ao controle [imposto pela quarentena] e à agressão cometida pelo parceiro".
Isso, porque ficam impedidas de sair de casa para ir à delegacia, por exemplo, ou não conseguem usar o celular para pedir socorro.
Estratégias para enfrentar a violência doméstica no isolamento
Na terça-feira (14/4), a organização feminista brasileira Think Olga lançou um relatório reunindo dados sobre o aumento da violência contra as mulheres durante a pandemia de coronavírus. No documento, a entidade lista estratégias para as vítimas de violência doméstica adotarem durante o confinamento:
- trazer alguém da família para casa;
- esconder objetos pontiagudos;
- retirar de casa possíveis "gatilhos" e potencializadores, como bebidas alcoólicas e drogas;
- avisar familiares e vizinhos sobre o que está acontecendo (em caso de episódios de violência);
- e manter contato com sua rede de apoio por meio de telefone e aplicativos, e-mail e outras redes sociais.
A OMS ainda cita:
- identifique um lugar a que possa ir caso precise sair de casa imediatamente;
- e trace um plano de proteção para mulher e seus filhos.
Em casos extremos de agressão, a delegada Raquel Gallinati, presidente SINDPESP, aconselha que a vítima vá presencialmente a uma delegacia da mulher. "Essa mulher deve procurar ajuda com amigos, familiares ou pelo telefone 180, mesmo durante o isolamento, por meio da internet. Mas, quando ela perceber que o convívio ficou insustentável, que há risco de morte, ela deve sair de casa e buscar ajuda numa delegacia imediatamente.”
Tanto a ONU Mulheres quanto a OMS e organizações feministas defendem que, durante a pandemia, a solução não é pôr fim ao isolamento social, mas, sim, manter ativos os serviços de proteção à mulher, aumentar o investimento em serviços on-line, declarar abrigos como serviços essenciais e oferecer suporte às ONGs locais de combate à violência doméstica.
Para a ONU Mulheres, é essencial que governos ofereçam apoio financeiro às mulheres, já que o impacto econômico da pandemia pode criar barreiras adicionais para uma vítima deixar um parceiro violento.